quarta-feira, 18 de maio de 2011

Uma vida em caixotes


 Desceu sobre mim o espírito das arrumações. Até a minha mãe anda admirada comigo por à meses não dizer a velha frase que ouço desde os seis anos: «ou arrumas o teu quarto ou eu abro a janela e vai tudo parar lá baixo!» De vez em quando dou com ela a olhar da porta com ar desconfiado e a abrir as portas do roupeiro para confirmar que não está tudo a monte lá para dentro. E não está. Está tudo arrumadinho nas gavetas, roupa de inverno separada da do verão. Casacos para um lado, vestidos para o outro. Tão arrumado que até me sobrou uma gaveta vazia. Como é que cheguei a este ponto? Pois não sei! Mas posso dizer que me deu uma trabalheira do caracinhas. É que para além de desarrumada tinha o péssimo defeito de guardar tudo. Sou daquelas pessoas que não se desfaz de nada. Um papelinho com um recadinho bonito, um clip em forma de mola que alguém me ofereceu, cabos de antigas máquinas de calcular, estojo da primária, canetas de feltro das aulas de EVT da altura do ciclo e o diabo a sete. Já ficam com uma ideia da quantidade de tralha que tinha. Agora multipliquem por duas casas. Esta e a de Lisboa! No dia em que o meu tempo de estadia em Lisboa chegou ao fim e voltei para a minha cidade 'mailinda', estava longe de imaginar a dor de cabeça que ia ter em encaixotar tudo. Ingenuamente estava convencida que encaixotava tudo em duas horas e sem grandes preocupações. Mentira. Pura mentira! Assim que comecei a abrir gavetas da secretária foi logo ali um enfrentar de realidade que me fez fechar a gaveta de imediato, sentar-me no sofá e pensar "daqui a bocado já lá vou, pode ser que tenha visto mal e não tenho tanta tralha como parece." Oh triste realidade. Comecei às duas da tarde, acabei às sete da noite. Entre encaixotar, arrumar, fazer triagem, sacos e sacos de lixo e de roupa para dar e de velharias e de indecisões, eram oito da noite quando sai de Lisboa, com o carro atolado até ao tecto qual carrinha de ciganos nómadas. Era raro o carro que passava por nós que não ficava a olhar lá para dentro. Travar era quase impossível, não viessem coisas disparadas para a frente. Mas o pior ainda estava para vir. Que era chegar a Aveiro e alombar com todos os caixotes escada acima com a minha mãe a olhar para mim com cara de «ai a minha rica casinha, que estava tão arrumada e vem-me esta maluca com coisas cá para dentro que já deviam estar na sucata à cinco anos». Ele era caixotes no hall de entrada, na sala, na cozinha, no meu quarto, livros e livros e livros, edredons, dvd's, cd's, sebentas da faculdade, impressora e tudo o que uma pessoa acumula em meia dúzia de anos de vida, principalmente, quem tem sorte de ter uma casa só para ela, onde espaço não falta. E acho que foi aí nesse momento, em que olhei à minha volta e vi a minha mãe com um misto de felicidade por me ter em casa outra vez e mortinha para me voltar a pôr a andar só para se ver livre de tanta confusão, que desceu em mim o espírito do desprendimento e arrumação. Em metade de um dia desfiz-me de coisas que já não usava, que já não vestia, que já não queria e que até então tinha sempre pena de me desfazer delas. No último sábado fiquei desprovida de apegos e ficou cá em casa só e apenas aquilo que era importante, aquilo que uso, aquilo que quero. O quarto ficou (quase) impecável. Falta uma pequena estante mas é coisa que se resolve brevemente. E já passaram quatro dias e o quarto mantém-se sem roupa em cima da cama nem na cadeira, sem sandálias e sem sapatilhas no chão, o saco do ginásio no devido lugar. E melhor, com a minha mãe a pensar que os anos que morei sozinha foi o seu melhor investimento.

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